segunda-feira, 16 de novembro de 2009

PARA ONDE VAMOS?

artigo de Fernando Henrique Cardoso no Estadão do dia 1º de novembro de 2009


A enxurrada de decisões governamentais esdrúxulas, frases
presidenciais aparentemente sem sentido e muita propaganda talvez
levem as pessoas de bom senso a se perguntarem: afinal, para onde
vamos? Coloco o advérbio “talvez” porque alguns estão de tal modo
inebriados com “o maior espetáculo da Terra”, de riqueza fácil que
beneficia poucos, que tenho dúvidas. Parece mais confortável fazer de
conta que tudo vai bem e esquecer as transgressões cotidianas, o
discricionarismo das decisões, o atropelo, se não da lei, dos bons
costumes. Tornou-se habitual dizer que o governo Lula deu continuidade
ao que de bom foi feito pelo governo anterior e ainda por cima
melhorou muita coisa. Então, por que e para que questionar os pequenos
desvios de conduta ou pequenos arranhões na lei?

Só que cada pequena transgressão, cada desvio vai se acumulando até
desfigurar o original. Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta
loucura há método. Método que provavelmente não advém do nosso
príncipe, apenas vítima, quem sabe, de apoteose verbal. Mas tudo o que
o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o
País, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo
de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e
sociedade que pouco têm que ver com nossos ideais democráticos.

É possível escolher ao acaso os exemplos de “pequenos assassinatos”.
Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma
mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada?
Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma bandeira
“nacionalista”, pois, se o sistema atual, de concessões, fosse
“entreguista”, deveria ter sido banido, e não foi. Apenas se juntou a
ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias
político-burocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar
os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem
venceu a concorrência para a compra de aviões militares, se o processo
de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência
governamental numa companhia (a Vale) que, se não é totalmente
privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas
privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem nenhum pudor,
passear pelo Brasil à custa do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do
meu, do nosso bolso…) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na
política externa, esquecer-se de que no Irã há forças democráticas,
muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a
quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos?

Pouco a pouco, por trás do que podem parecer gestos isolados e nem tão
graves assim, o DNA do “autoritarismo popular” vai minando o espírito
da democracia constitucional. Esta supõe regras, informação,
participação, representação e deliberação consciente. Na contramão
disso tudo, vamos regressando a formas políticas do tempo do
autoritarismo militar, quando os “projetos de impacto” (alguns dos
quais viraram “esqueletos”, quer dizer, obras que deixaram penduradas
no Tesouro dívidas impagáveis) animavam as empreiteiras e inflavam os
corações dos ilusos: “Brasil, ame-o ou deixe-o.” Em pauta temos a
Transnordestina, o trem-bala, a Norte-Sul, a transposição do São
Francisco e as centenas de pequenas obras do PAC, que, boas algumas,
outras nem tanto, jorram aos borbotões no Orçamento e mínguam pela
falta de competência operacional ou por desvios barrados pelo Tribunal
de Contas da União. Não importa, no alarido da publicidade, é como se
o povo já fruísse os benefícios: “Minha Casa, Minha Vida”; biodiesel
de mamona, redenção da agricultura familiar; etanol para o mundo e, na
voragem de novos slogans, pré-sal para todos.

Diferentemente do que ocorria com o autoritarismo militar, o atual não
põe ninguém na cadeia. Mas da própria boca presidencial saem
impropérios para matar moralmente empresários, políticos, jornalistas
ou quem quer que seja que ouse discordar do estilo “Brasil potência”.
Até mesmo a apologia da bomba atômica como instrumento para que
cheguemos ao Conselho de Segurança da ONU - contra a letra expressa da
Constituição - vez por outra é defendida por altos funcionários, sem
que se pergunte à cidadania qual o melhor rumo para o Brasil. Até
porque o presidente já declarou que em matéria de objetivos
estratégicos (como a compra dos caças) ele resolve sozinho. Pena que
se tenha esquecido de acrescentar: “L”État c”est moi.” Mas não se
esqueceu de dar as razões que o levaram a tal decisão estratégica: viu
que havia piratas na Somália e, portanto, precisamos de aviões de caça
para defender o “nosso pré-sal”. Está bem, tudo muito lógico.

Pode ser grave, mas, dirão os realistas, o tempo passa e o que fica
são os resultados. Entre estes, contudo, há alguns preocupantes. Se há
lógica nos despautérios, ela é uma só: a do poder sem limites. Poder
presidencial com aplausos do povo, como em toda boa situação
autoritária, e poder burocrático-corporativo, sem graça alguma para o
povo. Este último tem método. Estado e sindicatos, Estado e movimentos
sociais estão cada vez mais fundidos nos altos-fornos do Tesouro. Os
partidos estão desmoralizados. Foi no “dedaço” que Lula escolheu a
candidata do PT à sucessão, como faziam os presidentes mexicanos nos
tempos do predomínio do PRI. Devastados os partidos, se Dilma ganhar
as eleições sobrará um subperonismo (o lulismo) contagiando os dóceis
fragmentos partidários, uma burocracia sindical aninhada no Estado e,
como base do bloco de poder, a força dos fundos de pensão. Estes são
“estrelas novas”. Surgiram no firmamento, mudaram de trajetória e
nossos vorazes, mas ingênuos capitalistas recebem deles o abraço da
morte. Com uma ajudinha do BNDES, então, tudo fica perfeito: temos a
aliança entre o Estado, os sindicatos, os fundos de pensão e os
felizardos de grandes empresas que a eles se associam.

Ora, dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem
a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a
funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT, que já dominava
a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores
(governo). Com isso os fundos se tornaram instrumentos de poder
político, não propriamente de um partido, mas do segmento
sindical-corporativo que o domina. No Brasil os fundos de pensão não
são apenas acionistas - com a liberdade de vender e comprar em bolsas
-, mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de
empresas privadas ou “privatizadas”. Partidos fracos, sindicatos
fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido
no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o
bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se
ganhar as eleições. Comecei com para onde vamos? Termino dizendo que é
mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo, antes que seja
tarde.